Canja. Existem momentos que o que você pode oferecer é isso. O bom da canja é que ela serve para duas coisas: primeiro para mostrar que você está ali, cuidando simbolicamente de quem precisa, e depois porque essa dieta de cigarros, lágrimas e angústia realmente preocupa. Não pode fazer bem, não faz. Excetuando os cigarros, que nunca fumei, sei bem dos males que os dois outros ingredientes causam. Males necessários, é preciso frisar, aqueles que vêm para o bem, como pontua o clichê.
Nunca é fácil ser deixado ali sem o entender o que aconteceu. E disso de ficar sem entender o que aconteceu entendo bem. Mas sempre fico surpresa quando percebo que o que a gente fala nessas situações é pouco, perto do que a gente pensa. Você já percebeu que quando você se vê engolido por um abandono, pela desilusão, pela rejeição, além de imerso em um profundo ódio de si mesmo, você vê praticamente inundado por pensamentos que não te abandonam nem no sono? Aliás, eu diria que especialmente no sono que eles nos atacam.
Atacam sim. A palavra é boa, porque é quase mortal. Ou talvez esse quase seja desnecessário. É sempre mortal. Independente do que seja, há algo que morre, e o ruim é que não costuma ser o sentimento pelo outro, que continua ali, te fazendo lembrar das coisas boas. Eu sempre me compadeço. Porque lembro, porque sei. É difícil e na hora só os pensamentos ruins existem. Aqueles que nos lembram as razões pelas quais os outros podem nos odiar.
Apesar de ser uma péssima fazedora de lutos, sou boa fazedora de metáforas. Sem perceber, me vi fazendo mais uma. É que no meio dessa conversa em que a outra pessoa escuta apenas fragmentos das palavras que a gente usa para consolar, lembrei de uma coisa muito difícil de passar. Porque vou te contar uma coisa: se terminar um namoro é difícil, ser preterida por outra pessoa é excruciante. E olha que essa deve ser a primeira vez que eu uso essa palavra.
Aí eu me vi falando que essa situação qualifica o crime. Como um homicídio doloso, que pode ser qualificado. E que no fim de um relacionamento, há motivos que tornam o ato do rompimento qualificado. E que ser preterida é um deles. Outro é se o motivo for torpe, e um terceiro, os meios utilizados pelo agente para realizar seu crime. É que, para alguém, alguma coisa vai morrer. Há algo que foi sim assassinado. E é em cima desse cadáver inerte, dessa coisa disforme que a gente chora, é essa coisa que era bonita e que gente se recusa a enterrar.
Isso que escrevi agora me fez lembrar de um sonho que eu tive ainda outro dia. Não lembro de muita coisa antes e nem depois, mas lembro de uma figura sem forma definida, sobre uma cama, vestida de preto, bastante machucada, desfigurada por conta do que parecia ser um ataque por tubarões ou qualquer outra coisa que morda. E tinha alguém ao meu lado dizendo: "Não tem o que fazer, deixa aí, porque logo vai morrer". Eu obedeci e fui fazer outra coisa. Mas voltei. E ao voltar, percebi que, muito levemente, aquele corpo sangrando e desfigurado pulsava. Eu notei que, mesmo tendo sido esquecido em cima daquela cama, entregue a machucados bastante horríveis, que alterariam sua forma para sempre, aquela coisa ainda vivia, e tudo que ela precisava era de alguém que tomasse conta.
Eu acho que aquela coisa era eu. E no meu sonho, a única pessoa capaz de olhar e dizer que tinha salvação, também era eu. E quando a gente termina um relacionamento, a dor que invade, que engole, que atormenta é a de sentir incapaz de cuidar do mesmo corpo pelo qual se vela. Em alguns funerais, serve-se canja àqueles que permanecem ao lado do corpo durante toda a madrugada. Ontem eu fiz uma canja e ajudei a velar durante várias horas. Era só isso que eu poderia fazer. E foi o que eu fiz.