Mas não é possível fugir de si próprio; a fuga não constitui auxílio contra perigos internos
Essa frase eu tirei de Análise terminável e interminável, um texto do Freud que, como não poderia deixar de ser, é bem escrito na mesma medida em que é denso e que consegue falar sobre tudo o que é de fundamental à psicanálise. Sempre falei aqui sobre as coisas que penso, e quase sempre sobre as coisas que sinto. Na verdade eu me escancaro. Não existe meia medida comigo, o que às vezes é doloroso ao mesmo tempo em que me conforta e me dá força pra seguir em frente quando eu desanimo.
No meio da atenção que a frase me despertou, eu entrei no msn e comecei a conversar com uma amiga. A formatura dela tá chegando, meu convite está reservado há anos e eu tô muito feliz em poder ir à festa. A gente não conversa mais todos os dias, e dá pra contar nas mãos quantas vezes nos vemos por ano, mas volta e meia conversamos sobre de tudo um pouco. E ela tá passando por aquela fase muito crítica de quem termina a faculdade.
Que fazer? Procurar emprego até gastar sola de pé e ponta de dedo de tanto mandar e-mail? Fazer especializações, cursos, mestrado e sei lá mais o que para melhorar o currículo e ter mais que uma alternativa? As duas coisas? Quanto isso vai custar? Quanto de nós vai custar? Porque custa mais que dinheiro, mais que barras de ouro, inclusive. Implica perdas. Os amigos que fizeram diferentes escolhas estão também em lugares diferentes que você. Podem estar mais realizados, inclusive. Podem estar menos também. E aí, lendo um outro texto do Freud eu me deparo com isso:
[...] não se tem o direito de desesperar por não ver confirmadas as próprias expectativas; deve-se fazer uma revisão dessas expectativas.
E quando li isso ontem pensei em muita coisa. E sabem, não é a toa que esse trecho tá num texto que chama A história do movimento psicanalítico. Fiquei imaginando que escrever sobre a história do que foi a vida dele, deve ter feito Freud pensar e relembrar muitos desses momentos de possíveis desesperos, de quedas das expectativas, de necessidade de tomar outro rumo, seguir vivendo.
Ontem saiu o resultado do vestibular da UFPR. Eu tava na rua com as minhas irmãs quando passaram pela gente duas meninas todas sujas de lama. Depois vi uma vizinha do mesmo jeito na calçada, a mãe dela falando alto que a filha havia passado no vestibular. E sabe, me deu saudade. Porque lembro muito bem o que senti quando passei no vestibular. E lembro do quanto meus pais ficaram felizes. Lembro de sentir alívio. Lembro de pensar que atendi às expectativas deles, que se transformaram em minhas. E lembro de a minha mãe ter contado até pra uma pessoa que ligou enganado na minha casa.
Só que hoje, eu tenho vinte e seis anos e continuo estudando. Ok, eu recebo pra estudar, mas eu tô longe, muito longe de ser independente. E parece que muito longe de sentir o alívio do dia que passei no vestibular. E parece que quanto mais o tempo passa, mais tempo a gente tem que esperar pelo resultado das expectativas e mais a gente se destitui de outras possibilidades. Olhando pra trás, eu gostaria de não ter tentado abraçar o mundo.
E ao mesmo tempo em que penso nisso, penso que preciso voltar pra análise, começar a minha formação, entrar no curso de corte e costura, continuar o francês. Tudo no ano em que eu não tenho mais especialização e nem trabalho e que preciso terminar a minha dissertação, além de me concentrar no doutorado. Só que pensando nessa lista que parece um prenúncio de mais uma tentativa minha de fugir de mim, tirando terminar a dissertação (que é a única coisa necessária de verdade), o que preciso mesmo é voltar pra análise e ver se dou um jeito nessa boca de jacaré que quer abocanhar tudo de uma vez.