Em 2011, numa época em que eu ainda usava o twitter, uma amiga me falou pra eu dar uma olhada na página de uma psicóloga chamada Marisa Lobo. Entre uma bateção de boca apropriada em uma pessoa com uns onze anos, li e reli vários posicionamentos equivocados. O primeiro deles dizia respeito à apresentação: psicóloga cristã. Daí para frente, outras tantas colocações indevidas. Eu dei print em algumas delas e encaminhei uma denúncia formal ao Conselho Regional de Psicologia. Daí pra frente, não posso falar mais nada, porque trata-se de um processo ético no qual eu estou envolvida como denunciante.
É importante dizer que não sou a única. E claro que isso me alivia. É importante dizer também que não sou cristofóbica e nem anti-religiosa. Como a maioria das pessoas que eu conheço, fui criada cristã. Tenho um tipo de fé que me desafia sempre e hoje não me sinto ligada a nenhuma religião. Minha criação priorizou duas coisas: educação e honestidade. A religião vinha depois.
Meus pais são extremamente conservadores. Admiro os dois apesar de, na maioria dos assuntos, ocuparmos posições muito diferentes. E admiro até pelo fato de eles me ouvirem e refletirem sobre minhas posições, coisa que, do meu lado, fiz também a vida toda. A verdade é que esses dois valores são responsáveis inclusive por eu ser de esquerda.
Quando eu decidi fazer Psicologia, eu não tinha a menor ideia do que isso representava. Outro dia, eu falava para os meus alunos que, embora eu não pudesse dizer com certeza porque eu resolvi ser psicóloga, eu posso dizer porque eu concluí o curso e porque todos os dias eu continuo tendo a certeza de continuar sendo.
Um jeito de explicar isso é contando uma história. Eu dirigia em direção ao trabalho quando me deparei com um homem, de talvez uns quarenta e poucos anos, muito alinhado. Terno cinza escuro, justo, parecia costurado nele. Sapatos de verniz brilhando tanto quanto os cabelos, sem um fio fora do lugar. Gravata fininha, colarinho duro, parecia que ia a uma festa. Eram oito horas da manhã e ele andava na rua como se estivesse em musical. Gesticulava e andava em passos largos, quase como se ali fosse um palco e os transeuntes, o público. E ele também falava, e a fala parecia articulada. Uma pena que eu não pude ouvi-lo. Ao passar por ele eu sorri.
E eu sempre sorrio quando vejo algo que é do humano e que demonstra a diferença dele. Sorrio quando vejo as soluções que as pessoas encontram para viver nesse mundo absurdo. Sorrio por causa dessa variedade maravilhosa. E isso, isso eu aprendi enquanto me tornava psicóloga. É isso que tento transmitir quando ensino. Porque como psicóloga, ocupo uma posição perigosa: eu sou professora.
Essa anedota me faz pensar na resolução
001/99 e do quanto ela é bonita. Foi na faculdade que desconstruí meus preconceitos em relação à homossexualidade e tantos outras coisas. Para muito além do "tenho até amigos que são", eu comecei a perceber que vivemos em mundo cheio de variedade. O bonito da resolução é que ela estabelece as normas que guiarão um psicólogo em relação a uma temática que ainda é alvo de muita malvadeza.
Quando eu digo malvadeza é porque eu não consigo encontrar outra palavra para expressar o ato de oprimir e de subjugar o outro. Aliás, consigo: o nome dessa palavra é perversão. A segregação é uma forma grave de perversão. Há momentos na história da humanidade em que outros atos de malvadeza, de natureza semelhante, foram perpetrados. A ciência foi conivente e fundamentou muitos deles. Com isso quero dizer que: uma vez que determinados paradigmas segregativos não existem mais, torna-se inaceitável alguém sem o menor aparato técnico e teórico dizer o contrário. Dizer, por exemplo, que não há definições quanto à natureza da homossexualidade e que novas investigações precisam ser feitas.
As resoluções que podem ser sustadas com o projeto de João Campos, projeto este que foi apresentado exclusivamente para proteger formados em Psicologia (aos quais me recuso a chamar de psicólogas e psicólogos) que reforçam o preconceito e a discriminação.
Se chamar o projeto de "cura gay" é desonestidade intelectual, pare e pense. Mesmo você, pessoa tacanha, pense, por que retirar os seguintes artigos?
Art. 3° - os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça
a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva
tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados.
Parágrafo único - Os psicólogos não colaborarão com eventos e
serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.
Art. 4° - Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de
pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os
preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer
desordem psíquica
Você pode ser psicólogo e cristão, psicólogo e candomblecista, psicólogo e espírita, psicólogo e ateu. O que não pode é a sua visão de mundo religiosa ou anti-religiosa comprometer a liberdade do outro. Não é liberdade de expressão quando reforça preconceito. Deveria, inclusive, ser crime. Não é exercício profissional quando se coloca a fé no meio. Porque ter fé é crer no absurdo. E o absurdo não regulamenta a ciência.
Os objetivos por trás deste projeto podem ser agregados a partir de um termo: má-fé. E esta má-fé está sendo proferida pelos homens de fé. É um engodo em direção ao qual não podemos caminhar, porque o que encontraremos é o totalitarismo religioso. Não há um só exemplo de totalitarismo religioso que não tenha provocado morte, dor e sofrimento.