Tinha mais ou menos doze anos quando um dia se viu só, tendo sido abandonada subitamente pelo pai de Franz. Franz suspeitava que alguma coisa de grave havia acontecido, mas sua mãe simulava o drama com palavras neutras e medidas para não traumatizá-lo. Foi nesse dia, quando saía do apartamento para juntos darem um passeio pela cidade, que Franz notou que sua mãe estava com sapatos descasados. Ficou confuso, quis avisá-la, temendo ao mesmo tempo magoá-la. Ficou com ela duas horas pelas ruas sem poder despregar os olhos dos seus pés. Foi então que começou a ter uma vaga idéia do que significava sofrer.
(Milan Kundera - A insustentável leveza do ser)
E existem aquelas pessoas que, diante de uma grande tristeza, de um grande sofrimento, choram, gritam e esperneiam. Essas mesmas pessoas podem também ser aquelas que juram sentir tanto ódio que seriam incapazes de sequer pensar em ter por perto de novo a pessoa "causadora" do seu sofrimento. Podem também ser aquelas que, nesse momento de dor máxima, decidem que a melhor coisa que poderia ter lhes acontecido foi justamente o abandono. E que conseguem pensar em várias razões para não pensar no quanto, muito intimamente, se culpam pelo assunto. Podem ser elas também que decidem que o melhor é sair, encher a cara, não pensar em mais nada que diga respeito ao que o amanhã reserva. Agora eu só quero estar perto das coisas que ME digam respeito e que dependem de MIM, elas dizem.
Já vi e ouvi, como também já fui algumas dessas pessoas. Uma, duas, várias vezes. E vou dizer uma coisa: todos os jeitos são inúteis, todos são ineficazes. Não tem solução que tira a dor da gente com a mão (como a gente gostaria). A dor é viva, contínua, como uma infecção que precisa sarar. Se você já teve uma unha encravada, você sabe do que eu tô falando. Não adiana colocar o remédio, enfaixar o pé e esquecer dele. É preciso deixar a infecção sair, é preciso deixar que aquele latejar, pouco a pouco se transforme em uma dor que chega a ser gostosinha. Nessas horas, se você apertar de leve, vai sentir que ali havia uma unha encravada. Mas ela não vai mais te martirizar, te impedir de colocar sapato. Nada disso, ela só vai te lembrar que teus pés são sensíveis e que você deve tomar cuidado.
Só que nem sempre você toma cuidado, porque não dá para fazer isso o tempo todo. O que dá é para frequentar um bom podólogo que aplaque as novas incidências de unhas encravadas (é quando a metáfora pára de funcionar). No que diz respeito a outras dores, outros truques, outras técnicas são necessárias. Existem até profissionais que dizem ajudar, remédios que dizem aliviar. Mas no fim das contas, de todas as maneiras de se viver um sofrimento, talvez o silêncio seja aquele que nos coloque mais em contato com a própria dor. Tão em contato com a dor que os outros só notam que algo está errado quando você sai de casa com dois pés de sapatos diferentes. Quando você esquece coisas que não deveria esquecer. Quando as suas energias estão muito voltadas para te manter em pé, conversando, respirando, suspirando de tempos em tempos. E nem todo mundo é capaz de perceber a sutileza de um sofrer que se apresenta por pares de sapatos errados.
Acho que eu até já falei dessa citação do Kundera. Mas ela continua sendo, na minha opinião singela, a melhor definição de sofrimento que alguém poderia me dar.