Já escrevi muitas vezes sobre esses três anos. Já contei muitas histórias e nos dois últimos posts, os dois que escrevi na semana que foi a última da especialização, comecei a falar sobre o fim. É que o fim não é algo que chega do nada e ponto. Ele começa a marcar no antes e no depois, e deve ser por isso que pode ser bem dolorido.
Ainda que a duras penas, tenho aprendido algumas coisas na vida. Uma muito importante é: em momentos de crise, nunca tome decisões cujas conseqüências serão a longo prazo se você puder evitar, especialmente se uma de suas principais características é levar suas escolhas até o fim. E assim sou eu, eu encaro as dores, os tropeções, o arrependimento, mas é muito difícil, pra mim, voltar atrás numa decisão.
Claro que já voltei atrás de algumas, ainda bem que não sou tão engessada assim. Com dezessete anos, desisti de uma faculdade e com 23 de um mestrado que nem tinha começado. Só que essa última desistência foi como um soco no estômago, e socos no estômago normalmente exigem uma reação rápida e a minha foi ter decidido fazer uma especialização de três anos em São Paulo. E as aulas dessa especialização seriam semanais. Bom, acontece que eu morava em Guarapuava, que fica a quase 700 km de distância. Mas tudo bem, porque eu era uma psicóloga recém-formada, desempregada e com os pais com a maior boa vontade do mundo para bancar essa loucura. Eu tinha tempo e eu tinha apoio. O que mais uma pessoa pode desejar?
Lembro até hoje da primeira vez que fui pra lá. Morrendo de medo, liguei pra uma
amiga que conhecia melhor. Além de ter me explicado como eu fazia para sair da rodoviária, ela pediu pra
irmã dela me ajudar quando eu chegasse lá. Por muita sorte, os lugares onde eu tinha que ir eram próximos um do outro e de onde ela estava morando, ela me levou almoçar e aos lugares onde eu precisava ir, me deu tchau e benção e tudo deu certo. Ela riu de mim quando eu contei que a irmã dela e meu
ex namorado me alertaram para eu me cuidar, pra eu não olhar pra cima, pra eu não andar devagar demais, nem rápido demais, pra eu não falar no celular na rua, enfim. Todos ajudaram pra caramba, e como eu nunca antes agradeci, faço isso agora, muito obrigada aos três. Na semana seguinte as aulas começaram. Lá fui eu de mala, cuia e salto alto, que com o passar do tempo foram sendo abandonados. Só que agora eu precisava ir pra USP.
Aí a coisa complicou, porque eu tinha que pegar ou ônibus ou trem, e eu tinha MEDO de pegar ônibus em São Paulo, porque achava que sempre ia ficar presa no trânsito, e que não poderia prever a hora que ia chegar, e sempre foi difícil lidar com a imprevisibilidade das coisas. Quem me ajudou foi o
Ale. Ele bem me avisou que trem era uma merda, mas pelo menos eu sabia que em mais ou menos uma hora eu chegaria, e foi de trem que eu fui pra aula durante um ano e meio. Não desejo nem pro meu pior inimigo.
Como eu disse antes, no começo eu ia muito carregada. Travesseiro, blusa, cobertor, notebook. Chegava na aula cansada, ia embora exausta e voltava pra casa só o pó. Como autoflagelo pouco é bobagem, eu resolvi começar também uma especialização em Curitiba, que fica a 250 km de Guarapuava, e era de 15 em 15 dias. Então, em várias semanas do ano eu transitei por três cidades relativamente distantes umas das outras.
O segundo ano foi punk demais. Porque eu tive aulas em Curitiba até maio e trabalhava de manhã no hospital, à tarde no consultório e na faculdade e à noite idem. Não consigo me lembrar do quanto foi foda, deve ser tipo mãe que só lembra de como era bom quando os filhos eram bebês e deleta as noites sem dormir e as choradeiras. O que eu sei é que por mais que às vezes eu reclamasse, não era tão ruim assim e me incomodava muito quando as pessoas se referiam a isso como se fosse uma grande coisa. Era uma coisa que eu tinha assumido, não era? Então eu dava conta e não se fala mais nisso. Foi o ano que mais trabalhei, que mais cresci profissionalmente. Pode ser que eu não tenha aproveitado tanto as aulas. Pode ser que eu sentisse muito sono, ainda assim, foi.
Esse ano foi de longe o mais difícil. A especialização daqui de Curitiba tinha terminado, mas eu resolvi me mudar pra cá pra fazer o mestrado. Coincidentemente, fui chamada pra um teste seletivo que tinha feito em 2009. Era ideal, porque o trabalho era de vinte horas por semana, o que dava pra conciliar com o mestrado. Assim, eu trabalhava segunda, terça e quinta. Ia pro mestrado quarta o dia todo e quinta à noite pegava o ônibus pra São Paulo. Seis horas e meia depois, lá estava eu, não muito bonita e nem muito formosa, para passar 12 horas naquela cidade, já que 18h10, eu pegava o ônibus de volta pra casa.
O que atrapalhava era que no sábado eu tinha que ir pra uma especialização que eu era obrigada a fazer para continuar no meu trabalho. E eu odiava. O tema não me interessava, eu não gostava das aulas e eu estava profundamente cansada. Além disso, eu tinha minha casa pra cuidar, minhas contas pra deixar em dia, meu salário pra organizar, e ele não era muito. Quando chegou agosto, eu senti que eu tava perdendo o rumo. Eu não aguentava mais de verdade. O trabalho parecia custoso demais, acordar cedo começou a parecer um sacrifício enorme, e as aulas lá em São Paulo definitivamente contavam só com a presença do meu corpo. Como eu tinha pouco tempo pra estudar, eu levava meus textos pra ler durante aulas. Tudo o que eu pensava era: é só mais esse ano.
Mas foi em agosto mesmo que as coisas melhoraram bastante. Ou eu tenho muita sorte ou Deus é muito meu parceiro, porque minha bolsa do mestrado chegou. Eu pude parar de trabalhar. No dia que a secretária do mestrado mandou um e-mail contando sobre a bolsa, eu chorei de verdade.
Uma amiga minha tinha vindo passar o dia comigo e depois
outra chegou pra gente ir ao cinema. E as duas são testemunhas da minha alegria, que era muito, muito genuína.
Enfim, de lá pra cá, ainda que faltasse pouco tempo, eu comecei uma contagem regressiva do número de vezes que eu tinha que ir pra São Paulo. Em agosto, esse número era dezessete. E a cada semana eu riscava do calendário. Na correria com as coisas do mestrado, minha dissertação, e alguns percalços que eu preferia não ter passado, o tempo passou muito rápido. Foi eu piscar e novembro tinha chegado. De repente, estávamos combinando festa de encerramento. Eu pisquei de novo e dezembro chegou. Chegou junto o último dia. Finalmente.
Quando a minha supervisora preferida levantou e disse que eu seria a primeira a ganhar um abraço, senti a primeira vontade de chorar. Realmente, não pensei que fosse ser difícil, porque todo o processo tinha sido tão complicado que o fim poderia ser só alívio, né? Que nada. Fiquei triste que não consegui me despedir da tia do carrinho de lanche onde eu sempre almoçava, na correria entre atendimento de paciente e a supervisão. Onde eu aprendi que o sanduíche de carne louca é muito gostoso. Aliás, essa é a especiaria paulistana que eu mais gosto.
Enfim, sábado foi a festa de encerramento. E eu chorava como uma criança. Sabe quando as lágrimas rolam e não tem jeito nem de engolir o choro? Sabe quando o sentimento de perda chega com tudo? E você tem que se despedir de pessoas que você gostou e que você não sabe quando/se vai reencontrar. O que você sabe é que essas pessoas, mesmo que você não tenha sido melhor amigo delas, vivenciaram coisas muito parecidas, de formas diferentes, mas enfim, estavam lá. E foi difícil pra todo mundo, porque foi um aprendizado cheio de angústia. Mas assim é a psicanálise.
Eu fiz bons amigos nesses três anos e espero de coração que as nossas vontades ajudem a gente a não se perder um do outro. Eu não sei quais são meus planos a partir de agora. Sei que quero continuar morando em Curitiba, quero fazer doutorado, quero começar minha formação no ano que vem. Sei disso tudo. Mas outra coisa que aprendi em decorrência dessa especialização é que quando a gente planeja demais, as chances de a coisa descambar pra outro lado são grandes. Por isso, ano que vem, eu não sei o que vai ser. Posso dizer que não quero viajar de ônibus nem daqui à Campo Largo. Mas não vou falar muito alto, porque o acaso da vida pode ouvir e me dizer o contrário.