Quando eu era criança conheci uma menininha. Nós estávamos com uns cinco anos e era o primeiro dia da pré-escola. Para que nossa amizade começasse bastou que ela apontasse para a cadeira ao lado pedindo que eu me sentasse. Até hoje apontamos para cadeira ao lado, como quem diz uma à outra "senta aqui, me fala sobre você".
Ela fazia ballet. E nas nossas brincadeiras em que Ken e Barbie tinham muitos filhos, um dia perguntei quantos ela queria ter. Que menininha de cinco anos não pensa nos filhos que terá? Ela não. Respondeu que não teria nenhum, porque bailarinas não podiam ser mães. Inclusive, bailarinas não podiam fazer nada que estragasse o corpo, porque precisavam ser magras. Bailarinas, inclusive, nem poderiam casar, porque o marido poderia atrapalhar a carreira. Só a bailarina que não pode.
Fiquei chocada. Eu que tinha sete bonecas, cada qual com seu nome, seu berço, sua roupa de dormir. Eu que tinha devaneios com o dia em que aquelas bonecas seriam substituídas por bebês de verdade, que pensava quem seria o moço que cuidaria destes pretensos bebês junto de mim. Eu e minha amiga éramos e somos bem diferentes, e continuamos durante algum tempo brincando com barbies, bonecas, amarelinhas e tudo aquilo que existia para se fazer de conta alguma coisa.
Crescemos amigas, mas ela cresceu mais rápido. Eu queria ficar criança por mais tempo, ela começou a namorar e não continuou bailarina. E durante muito tempo, eu continuei querendo muitos filhos, casar aos 24 anos e ser veterinária.
Hoje eu tenho vinte e cinco e daqui a dois meses, faço vinte e seis e a origem do meu feminismo começou há tão pouco tempo que tenho vergonha de contar.
Há dois anos e meio eu saí da faculdade de psicologia pronta para ir morar em Buenos Aires, onde eu faria um mestrado. Meu então namorado foi comigo. Lá havia alguma coisa muito errada, que me causava tal desconforto que não parecia certo eu permanecer por lá. Estava triste e com a sensação de que ali eu não cresceria, continuaria uma criança e brincaria de casinha com ele. Comecei a não botar mais fé no namoro e comecei a pensar no que eu poderia fazer para que a minha vida tomasse um rumo diferente daquele. Eu queria trabalhar.
Voltei pro Brasil chateada. Não queria tê-lo deixado para trás, mas o que aconteceu no decorrer do tempo é hoje mais que suficiente para mostrar que foi uma escolha acertada. Continuei gostando muito dele e namoramos durante um bom período, todo o que ele ficou lá, já que resolveu ficar. E nesse tempo eu cresci. A despeito do que eu tinha pensado que seria a minha vida, comecei a me notar mais companheira de mim mesma. E mais fazendo o possível para não ir contra o que eu queria, o que acreditava. E por isso consegui pelo menos uma parte do que busquei quando decidi deixar aquele que tinha sido o amor da minha vida pra trás.
Durante muito tempo, comer sozinha era penoso. Hoje eu faço uma refeição para mim mesma e como com o mesmo prazer que comeria se estivesse com outras pessoas. Notar que estar com uma pessoa em quem você não pode apostar a sua coleção de papéis de carta, fez a diferença nesse sentido. Notar que posso sim esperar e esperar enquanto seja necessário por aquele que nunca tentaria que eu fosse outra coisa que não eu, também fez a diferença. Não sentir medo durante esse tempo, tem a ver com a origem do meu feminismo: essa vontade de ser mulher a despeito de ter ao meu lado quem me afirme isso. Aliás, hoje tenho pra mim, que prefiro mesmo um homem que se sinta atraído por uma dessas que já são mulheres antes que eles lhes contem esse grande segredo.