Nos últimos tempos tenho observado um fenômeno dos mais esquisitos: fones de ouvido tornaram-se desnecessários para quem anda de ônibus, bicicletas, a pé. Não entendo, juro.
Numa das viagens pra São Paulo, um senhor estava ouvindo rádio pelo celular sem fones de ouvido. Muito educamente, perguntei se ele tinha fones, ele disse que não. Então, pedi se, por gentileza, ele poderia desligar. Desligou na hora, numa boa. Mas eu fiquei incomodada. É que eu não precisaria ter tido que pedir, entende? Não precisaria ter tido o constrangimento de lembrar a uma pessoa de quase cinquenta anos que eu não era obrigada a ouvir rádio junto com ela. Nem eu e nem as outras vinte pessoas que estavam dentro do ônibus.
Pois bem, essa semana, mesma viagem, mesmo horário. Cheguei à minha poltrona, tirei meu cobertor, meu travesseirinho, coloquei meus fones de ouvido para eu ouvir música até me dar sono. Quando percebi que havia uma música por trás da minha. Tirei os fones e comecei a procurar de onde vinha o som. E vinha da pessoa sentada atrás de mim. Eu simplesmente olhei pra ele, deve ter sido um olhar com lasers, porque imediatamente, o sujeitio falou "Se tá incomodada, me compra uma fone".
Fiquei chocada. Não pela grosseria, porque aqui a casca é grossa. Mas pela inversão de uma lógica que eu aprendi, entre tantas outras ocasiões, na primeira vez em que viajei de ônibus com a minha mãe. Eu tinha uns 3 anos, talvez. Fomos eu, minha mãe e minha irmã numa longa viagem entre o interior do paraná até o de santa catarina. Para mim parecia interminável. Eu queria ligar a luz do ônibus, que criança não quer? Queria conhecer o banheiro. Queria sentar perto da janela. Enfim. Minha mãe me levou ao banheiro e deixou que eu sentasse perto da janela. Mas quando comecei a ligar e desligar a luz insistentemente, ela disse: Pare com isso, isso incomoda as outras pessoas.
Não entendi direito porque a luz incomodaria as outras pessoas. Hoje entendo e evito, apesar de eu mesma não me incomodar tanto assim com a luz, que nos ônibus mais modernos, está muito mais forte do que a do ônibus que eu viajei quando era criança. O que me chocou no rapaz que me deu aquela invertida foi o fato de ele realmente pensar que o problema era eu. Que o problema sou eu e todas as pessoas que não comungam do mesmo gosto musical que ele.
Fiquei pensando: se todas as pessoas do ônibus decidissem pegar seus celulares e ouvir suas músicas sem fones de ouvido, quem conseguiria ouvir alguma coisa? E aí lembrei que em São Paulo, os alto-falantes do metrô lembram as pessoas a não ouvir música a ponto de incomodar a pessoa que está ao lado. Sempre me pareceu estranho eles terem que lembrar isso. Agora não parece mais. Acho que esqueceram que gente também tem limite, que eu não preciso ouvir o que você gosta, gostar do que você gosta. Eu sei que sou chata, mas acho que não preciso saber sua vida quando você conversa com alguém no celular.
Cadê o limite? O limite do público e do privado, cadê? Isso explica aquele vereador do Rio de Janeiro ter batido na síndica que pedia respeito aos vizinhos por causa de uma festa? Cadê o limite que me separa do outro e mostra pra ele que aqui começa eu, meu corpo, meus gostos, minhas necessidades ao lado das suas, mas não sobrepostas. Eu tenho me sentido muito incomodada por essa falta de limites. Desde uma pessoa que pega a caneta da minha mão porque precisa dela, que senta a uma distância que me impossibilita de pensar, que quer saber tudo o que eu estou fazendo, do que estou rindo, o que estou pensando.
Eu tenho limites sim. Note que eu não falo respeito. Isso não é falta de respeito. É falta de as pessoas perceberem que esses limites existem e que precisam ser respeitados. Se elas soubessem, respeitariam. Ou não.